Tuesday, August 10, 2004

Mensagem

Fernando Pessoa






BENEDICTUS DOMINUS DEUS

NOSTER QUI DEDIT NOBIS

SIGNUM

PRIMEIRA PARTE

BRASÃO

I. - OS CAMPOS

PRIMEIRO

O DOS CASTELLOS

A Europa jaz, posta nos cotovellos:


De oriente a Occidente jaz, fitando,

E toldam-lhe romanticos cabellos

Olhos gregos, lembrando.

O cotovello esquerdo é recuado;

O direito é em angulo disposto.

Aquelle diz Italia onde é pousado;

Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se appoia o rosto.

Fita, com olhar sphyngico e fatal,

O Occidente, futuro do passado.

O rosto que fita é Portugal.
8-12-1928

SEGUNDO

O DAS QUINAS

Os Deuses vendem quanto dão.


Compra-se a gloria com desgraça.

Ai dos felizes, porque são

Só o que passa!

Baste a quem baste o que lhe basta

O bastante de lhe bastar!

A vida é breve, a alma é vasta:

Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza

Que Deus ao Christo definiu:

Assim o oppoz à Natureza

E Filho o ungiu.

8-12-1928



II. - OS CASTELLOS

PRIMEIRO

ULYSSES

O mytho é o nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus

É um mytho brilhante e mudo –

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos creou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundal-a decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.



SEGUNDO

VIRIATO


Se a alma que sente e faz conhece

Só porque lembra o que esqueceu,

Vivemos, raça, porque houvesse

Memoria em nós do instincto teu.

Nação porque reincarnaste,

Povo porque resuscitou

Ou tu, ou o de que eras a haste –

Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquella fria

Luz que precede a madrugada,

E é já o ir a haver o dia

Na antemanhã, confuso nada.

22-1-1934



TERCEIRO

O CONDE D. HENRIQUE

Todo começo é involuntario.


Deus é o agente.

O heroe a si assiste, vario

E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada

Teu olhar desce.

«Que farei eu com esta espada?»

Ergueste-a, e fez-se.

QUARTO

D. TAREJA

As nações todas são mysterios.

Cada uma é todo o mundo a sós.

Ó mãe de reis e avós de imperios,

Vella por nós!

Teu seio augusto amamentou

Com bruta e natural certeza

O que, imprevisto, Deus fadou.

Por elle resa!


Dê tua prece outro destino

A quem fadou o instincto teu!

O homem que foi o teu menino

Envelheceu.

Mas todo vivo é eterno infante

Onde estás e não há o dia.

No antigo seio, vigilante,

De novo o cria!

24-9-1928



QUINTO

D. AFONSO HENRIQUES

Pae, foste cavalleiro.

Hoje a vigilia é nossa.

Dá-nos o exemplo inteiro

E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,


Novos infieis vençam,

A benção como espada,

A espada como benção!



SEXTO

D. DINIS

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo

O plantador de naus a haver,

E ouve um silencio murmuro comsigo:

É o rumor dos pinhaes que, como um trigo

De Imperio, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,

Busca o oceano por achar;

E a falla dos pinhaes, marulho obscuro,

É o som presente d’esse mar futuro,

É a voz da terra anciando pelo mar.

9-2-1934




SEPTIMO (I)

D. JOÃO O PRIMEIRO

O homem e a hora são um só

Quando Deus faz e a história é feita.

O mais é carne, cujo pó

A terra espreita.

Mestre, sem o saber, do Templo

Que Portugal foi feito ser,

Que houveste a gloria e deste o exemplo

De o defender.

Teu nome, eleito em sua fama,

É, na ara da nossa alma interna,

A que repelle, eterna chamma,

A sombra eterna.

12-2-1934




SEPTIMO (II)

D. PHILIPPA DE LENCASTRE

Que enigma havia em teu seio

Que só genios concebia?

Que archanjo teus sonhos veio

Vellar, maternos, um dia?

Volve a nós teu rosto serio,

Princeza do Santo Gral,

Humano ventre do Imperio,

Madrinha de Portugal!

26-9-1928



III. - AS QUINAS

PRIMEIRA

D. DUARTE,

REI DE PORTUGAL

Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.


A regra de ser Rei almou meu ser,

Em dia e letra escrupuloso e fundo.

Firme em minha tristeza, tal vivi.

Cumpri contra o Destino o meu dever.

Inutilmente? Não, porque o cumpri.

26-9-1928



SEGUNDA

D. FERNANDO,

INFANTE DE PORTUGAL

Deu-me Deus o seu gladio, porque eu faça

A sua santa guerra.

Sagrou-me seu em honra e em desgraça,

Às horas em que um frio vento passa

Por sobre a fria terra.

Poz-me as mãos sobre os hombros e doirou-me

A fronte com o olhar;


E esta febre de Além, que me consome,

E este querer grandeza são seu nome

Dentro em mim a vibrar.

E eu vou, e a luz do gladio erguido dá,

Em minha face calma.

Cheio de Deus, não temo o que virá,

Pois, venha o que vier, nunca será

Maior do que a minha alma.

21-7-1913



TERCEIRA

D. PEDRO,

REGENTE DE PORTUGAL

Claro em pensar, e claro no sentir,

É claro no querer;

Indifferente ao que há em conseguir

Que seja só obter;


Duplice dono, sem me dividir,

De dever e de ser –

Não me podia a Sorte dar guarida

Por não ser eu dos seus.

Assim vivi, assim morri, a vida,

Calmo sob mudos céus,

Fiel à palavra dada e à idéa tida.

Tudo mais é com Deus!



15-2-1934



QUARTA

D. JOÃO,

INFANTE DE PORTUGAL

Não fui alguem. Minha alma estava estreita

Entre tam grandes almas minhas pares,

Inutilmente eleita,


Virgemmente parada;



Porque é do portuguez, pae de amplos mares,

Querer, poder só isto:

O inteiro mar, ou a orla vã desfeita –

O todo, ou o seu nada.



28-3-1930



QUINTA

D. SEBASTIÃO,

REI DE PORTUGAL

Louco, sim, louco, porque quiz grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em mim minha certeza;

Porisso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que ha.


Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nella ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadaver addiado que procria?



20-2-1933



IV. - A COROA

NUNALVARES

Que aureola te cerca?

É a espada que, volteando,

Faz que o ar alto perca

Seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,

Faz esse halo no céu?

É Excalibur, a ungida,


Que o Rei Arthur te deu.

Sperança consummada,

S. Portugal em ser,

Ergue a luz da tua espada

Para a estrada se ver!



8-12-1928

V. - O TIMBRE

A CABEÇA DO GRYPHO

O INFANTE D. HENRIQUE

Em seu throno entre o brilho das espheras,

Com seu manto de noite e solidão,

Tem aos pés o mar novo e as mortas eras –

O unico imperador que tem, deveras,

O globo mundo em sua mão.



26-9-1928




UMA ASA DO GRYPHO

D. JOÃO O SEGUNDO

Braços cruzados, fita além do mar.

Parece em promontorio uma alta serra –

O limite da terra a dominar

O mar que possa haver além da terra.

Seu formidavel vulto solitario

Enche de estar presente o mar e o céu,

E parece temer o mundo vario

Que elle abra os braços e lhe rasgue o véu.



26-9-1928



A OUTRA ASA DO GRYPHO

AFFONSO DE ALBUQUERQUE

De pé, sobre o paizes conquistados


Desce os olhos cansados

De ver o mundo e a injustiça e a sorte.

Não pensa em vida ou morte,

Tam poderoso que não quere o quanto

Póde, que o querer tanto

Calcára mais do que o submisso mundo

Sob o seu passo fundo.

Trez imperios do chão lhe a Sorte apanha.

Creou-os como quem desdenha.



26-9-1928



SEGUNDA PARTE

MAR PORTUGUÊS

POSSESSIO MARIS

I


O INFANTE

Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quiz que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou creou-te portuguez.

Do mar e nós em ti nos deu signal.

Cumpriu-se o Mar, e o Imperio se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!



II

HORIZONTE

Ó mar anterior a nós, teus medos


Tinham coral e praias e arvoredos.

Desvendadas a noite e a cerração,

As tormentas passadas e o mysterio,

Abria em flor o Longe, e o Sul siderio

Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longinqua costa –

Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

Em arvores onde o Longe nada tinha;

Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

E, no desembarcar, ha aves, flores,

Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as fórmas invisiveis

Da distancia imprecisa, e, com sensiveis

Movimentos da esprança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

A arvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da Verdade.




III

PADRÃO

O esforço é grande e o homem é pequeno.

Eu, Diogo Cão, navegador, deixei

Este padrão ao pé do areal moreno

E para deante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.

Este padrão signala ao vento e aos céus

Que, da obra ousada, é minha a parte feita:

O por-fazer é só com Deus.

E ao immenso e possivel oceano

Ensinam estas Quinas, que aqui vês,

Que o mar com fim será grego ou romano:

O mar sem fim é portuguez.

E a Cruz ao alto diz que o que me ha na alma

E faz a febre em mim de navegar


Sé encontrará de Deus na eterna calma

O porto sempre por achar.

13-9-1918



IV

O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou trez vezes,

Voou trez vezes a chiar,

E disse, «Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?»

E o homem do leme disse, tremendo,

«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?»


Disse o mostrengo, e rodou trez vezes,

Trez vezes rodou immudo e grosso,

«Quem vem poder o que só eu posso,

que moro onde nunca ninguem me visse

e escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse,

«El-Rei D. João segundo!»

Trez vezes do leme as mãos ergueu,

Trez vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer trez vezes,

«Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um Povo que quere o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,

Manda a vontade, que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!»

9-9-1918




V

EPITAPHIO DE BARTOLOMEU DIAS

Jaz aqui, na pequena praia extrema,

O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,

O mar é o mesmo: já ninguem o tema!

Atlas, mostra alto o mundo no seu hombro.



VI

OS COLOMBOS

Outros haverão de ter

O que houvermos de perder.

Outros poderão achar

O que, no nosso encontrar,

Foi achado, ou não achado,

Segundo o destino dado.

Mas o que a elles não toca


É a Magia que evoca

O Longe e faz d’elle historia.

E porisso a sua gloria

É justa aureola dada

Por uma luz emprestada.

2-4-1934



VII

OCCIDENTE

Com duas mãos – o Acto e o Destino –

Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu

Uma ergue o facho tremulo e divino

E a outra afasta o véu.

Fosse a hora que haver ou a que havia

A mão que ao Occidente o véu rasgou,

Foi alma a Sciencia e corpo a Ousadia

Da mão que desvendou.


Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal

A mão que ergueu o facho que luziu,

Foi Deus a alma e o corpo Portugal

Da mão que o conduziu.



VIII

FERNÃO DE MAGALHÃES

No valle clareia uma fogueira.

Uma dança sacode a terra inteira.

E sombras disformes e descompostas

Em clarões negros do valle vão

Subitamente pelas encostas,

Indo perder-se na escuridão.

De quem é a dança que a noite aterra?

São os Titans, os filhos da Terra,

Que dançam da morte do marinheiro

Que quiz cingir o materno vulto –


Cingil-o, dos homens, o primeiro –,

Na praia ao longe por fim sepulto.

Dançam, nem sabem que a alma ousada

Do morto ainda commanda a armada,

Pulso sem corpo ao leme a guiar

As naus no resto do fim do espaço:

Que até ausente soube cercar

A terra inteira com seu abraço.

Violou a Terra. Mas elles não

O sabem, e dançam na solidão;

E sombras disformes e descompostas,

Indo perder-se nos horizontes,

Galgam do valle pelas encostas

Dos mudos montes.



IX

ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA


Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra

Suspendem de repente o odio da sua guerra

E pasmam. Pelo valle onde se ascende aos céus

Surge um silencio, e vae, da nevoa ondeando os véus,

Primeiro um movimento e depois um assombro.

Ladeiam-o, ao durar, os medos, hombro a hombro,

E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta

Cahe-lhe, e em extase vê, à luz de mil trovões,

O céu abrir o abysmo à alma do Argonauta.

10-1-1922



X

MAR PORTUGUEZ

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lagrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,


Quantos filhos em vão resaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a lama não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,

Mas nelle é que espelhou o céu.



XI

A ULTIMA NAU

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,

E erguendo, como um nome, alto o pendão

Do Imperio,

Foi-se a ultima nau, ao sol aziago

Erma, e entre choros de ancia e de presago


Mysterio.

Não voltou mais. A que ilha indescoberta

Aportou? Voltará da sorte incerta

Que teve?

Deus guarda o corpo e a fórma do futuro,

Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro

E breve.

Ah, quanto mais ao povo a alma falta,

Mais a minha alma atlantica se exalta

E entorna,

E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,

Vejo entre a cerração teu vulto baço

Que torna.

Não sei a hora, mas sei que ha a hora,

Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora

Mysterio.

Surges ao sol em mim, e a nevoa finda:


A mesma, e trazes o pendão ainda

Do Imperio.



XII

PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silencio hostil,

O mar universal e a saüdade.

Mas a chamma, que a vida em nós creou,

Se ainda ha vida ainda não é finda.

O frio morto em cinzas a occultou:

A mão do vento pode erguel-a ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ancia –,

Com que a chamma do esforço se remoça,

E outra vez conquistemos a Distancia –

Do mar ou outra, mas que seja nossa!


31-12-1921

1-1-1922



TERCEIRA PARTE

O ENCOBERTO

PAX IN EXCELSIS

I. - OS SYMBOLOS

PRIMEIRO

D. SEBASTIÃO

Sperae! Cahi no areal e na hora adversa

Que Deus concede aos seus

Para o intervallo em que esteja a alma immersa

Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura

Se com Deus me guardei?

É O que eu me sonhei que eterno dura,


É Esse que regressarei.



SEGUNDO

O QUINTO IMPÉRIO

Triste de quem vive em casa,

Contente com o seu lar,

Sem que um sonho, no erguer de asa,

Faça até mais rubra a brasa

Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!

Vive porque a vida dura.

Nada na alma lhe diz

Mais que a lição da raiz –

Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem

No tempo que em eras vem.

Ser descontente é ser homem.


Que as forças cegas se domem

Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro

Tempos do ser que sonhou,

A terra será theatro

Do sai claro, que no atro

Da erma noite começou.

Grecia, Roma, Christandade,

Europa – os quatro se vão

Para onde vae toda a edade.

Quem vem viver a verdade

Que morreu D. Sebastião?

21-2-1933



TERCEIRO

O DESEJADO

Onde quer que, entre sombras e dizeres,


Jazas, remoto, sente-se sonhando,

E ergue-te do fundo de não-seres

Para teu povo fado!

Vem, Galaaz com patria, erguer de novo,

Mas já no auge da suprema prova,

A alma penitente do teu povo

À Eucharistia Nova.

Mestre da Paz, ergue teu gladio ungido,

Excalibur do Fim, em geito tal

Que sua Luz ao mundo dividido

Revele o Santo Gral!

18-1-1934



QUARTO

AS ILHAS AFORTUNADAS

Que voz vem no som das ondas

Que não é a voz do mar?


É a voz de alguem que nos falla,

Mas que, se escutamos, cala,

Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,

Sem saber de ouvir ouvimos,

Que ella nos diz a esperança

A que, como uma criança

Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,

São terras sem ter logar,

Onde o Rei mora esperando.

Mas, se vamos dispertando,

Cala a voz, e ha só o mar.

26-3-1934



QUINTO

O ENCOBERTO


Que symbolo fecundo

Vem na aurora anciosa?

Na Cruz Morta do Mundo

A Vida, que é a Rosa.

Que symbolo divino

Traz o dia já visto?

Na Cruz, que é o Destino,

A Rosa, que é o Christo.

Que symbolo final

Mostra o sol já disperto?

Na Cruz morta e fatal

A Rosa do Encoberto.

21-2-1933

11-2-1934



II. - OS AVISOS




PRIMEIRO

O BANDARRA

Sonhava, anonymo e disperso,

O Imperio por Deus mesmo visto,

Confuso como o Universo

E plebeu como Jesus Christo

Não foi nem santo nem heroe,

Mas Deus sagrou com Seu signal

Este, cujo coração foi

Não portuguez mas Portugal.

28-3-1930







SEGUNDO

ANTÓNIO VIEIRA

O céu strella o azul e tem grandeza.


Este, que teve a fama e à gloria tem,

Imperador da lingua portuguesa,

Foi-nos um céu tambem.

No immenso espaço seu de meditar,

Constellado de fórma e de visão,

Surge, prenuncio claro do luar,

El-rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do ethereo.

É um dia; e, no céu amplo de desejo,

A madrugada irreal do Quinto Imperio

Doira as margens do Tejo.

31-7-1929



TERCEIRO

Screvo meu livro à beira-magua.

Meu coração não tem que ter.

Tenho meus olhos quntes de agua.


Só tu, Senhor, me dás viver.

Só te sentir e te pensar

Meus dias vacuos enche e doura.

Mas quando quererás voltar?

Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Christo

De a quem morreu o falso Deus,

E a dispertas do mal que existo

A Nova Terra e os Novos Céus?

Quando virás, ó Encoberto,

Sonho das eras portuguez,

Tornar-me mais que o sopro incerto

De um grande anceio que Deus fez?

Ah, quando quererás, voltando,

Fazer minha esperança amor?

Da nevoa e da saudade quando?

Quando, meu Sonho e meu Senhor?


10-12-1928



III. - OS TEMPOS

PRIMEIRO

NOITE

A nau de um d’elles tinha-se perdido

No mar indefinido.

O segundo pediu licença ao Rei

De, na fé e na lei

Da descoberta ir em procura

Do irmão no mar sem fim e a nevoa escura.

Tempo foi. Nem primeiro nem segundo

Volveu do fim profundo

Do mar ignoto à patria por quem dera

O enigma que fizera.

Então o terceiro a El-Rei rogou

Licença de os buscar, e El-Rei negou.


*

Como a um captivo, o ouvem a passar

Os servos do solar.

E, quando o vêem, vêem a figura

Da febre e da amargura,

Com fixos olhos rasos de ancia

Fitando a prohibida azul distancia.

*

Senhor, os dois irmãos do nosso Nome –

O Poder e o Renome –

Ambos se foram pelo mar da edade

À tua eternidade;

E com elles de nós se foi

O que faz a alma poder ser de heroe,

Queremos ir buscal-os, d’esta vil

Nossa prisão servil:

É a busca de quem somos, na distancia


De nós; e, em febre de ancia,

A Deus as mãos alçamos.

Mas Deus não dá licença que partamos.



SEGUNDO

TORMENTA

Que jaz no abysmo sob o mar que se ergue?

Nós, Portugal, o poder ser.

Que inquietação do fundo nos soergue?

O desejar poder querer.

Isto, e o mysterio de que a noite é o fausto...

Mas subito, onde o vento ruge,

O relampago, pharol de Deus, um hausto

Brilha, e o mar scuro struge.

26-2-1934

TERCEIRO

CALMA


Que cousa é que as ondas contam

E se não pode encontrar

Por mais naus que haja no mar?

O que é que as ondas encontram

E nunca se vê surgindo?

Este som de o mar praiar

Onde é que está existindo?

Ilha proxima e remota,

Que nos ouvidos persiste,

Para a vista não existe.

Que nau, que armada, que frota

Pode encontrar o caminho

À praia onde o mar insiste,

Se à vista o mar é sòzinho?

Haverá rasgões no espaço

Que dêem para outro lado,

E que, um d’elles encontrado,


Aqui, onde ha só sargaço,

Surja uma ilha velada,

O paiz afortunado

Que guarda o Rei desterrado

Em sua vida encantada?

15-2-1934

QUARTO

ANTEMANHÃ

O mostrengo que está no fim do mar

Veio das trevas a procurar

A madrugada do novo dia,

Do novo dia sem acabar;

E disse, «Quem é que dorme a lembrar

Que desvendou o Segundo Mundo,

Nem o Terceiro quere desvendar?»

E o som na treva de elle rodar

Faz mau o somno, triste o sonhar,


Rodou e foi-se o mostrengo servo

Que seu senhor veio aqui buscar.

Que veio aqui seu senhor chamar –

Chamar Aquelle que está dormindo

E foi outrora Senhor do Mar.

8-7-1933



QUINTO

NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,

Define com perfil e ser

Este fulgor baço da terra

Que é Portugal a entristecer –

Brilho sem luz e sem arder,

Como o que o fogo-fatuo encerra.

Ninguem sabe que coisa quere.

Ninguem conhece que alma tem,


Nem o que é mal nem o que é bem.

(Que ancia distante perto chora?)

Tudo é incerto e derradeiro.

Tudo é disperso, nada é inteiro.

Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

10-12-1928


Valete, Fratres
PS: Pronto, já cá faltava este, o épico místico-lusitano por excelência! Há quem diga que foi para elevar o nivel depois do Almada. E há quem diga que não foi por nada. Há quem diga que essa merda não tem interesse nenhum. Eu, por mim, ao ler isto e ao gostar disto, justifico-me da seguinte maneira relativamente às contradições que o poema me suscita: subscrevo a poesia, a mestria e a alma do poeta; não subscrevo a política. É mais ou menos isso e tranquiliza-me. Quanto a vós, façam como melhor vos aproveitar. Por tudo ou por nada fui buscá-lo aquele linque ali à frente, a quem agradeço o contributo nesta árdua batalha pela conquista de leitores neste país. Espalhem a palavra, como cantava o Godinho:http://faroldasletras.no.sapo.pt

Sunday, June 20, 2004

Manifesto Anti-Dantas

José de Almada Negreiros (Poeta d'Orpheu Futurista e tudo – 1915)



BASTA PUM BASTA

Uma geração, que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo do zero!


Abaixo a geração!

Morra o Dantas, morra! Pim!

Uma geração com um Dantas a Cavalo é um burro impotente!

Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco!

O Dantas é um cigano!

O Dantas é meio cigano!

O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!

O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesa!

O Dantas é um habilidoso!

O Dantas veste-se mal!

O Dantas usa ceroulas de malha!

O Dantas especula e inocula os concubinos!

O Dantas é Dantas!

O Dantas é Júlio!

Morra o Dantas, morra! Pim!

O Dantas fez uma soror Mariana que tanto o podia ser como a soror Inês ou A Inês de Castro, ou a Leonor Teles ou o Mestre D'Avis, ou a Dona Constança, ou a Nau Catrineta, ou a Maria Rapaz!

E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!


O Dantas é um ciganão!

Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!

Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem murais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas, e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser judas! Basta ser Dantas!

Morra o Dantas, morra! Pim!

O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!

O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair... mas é preciso deitar dinheiro!

O Dantas é um soneto dele-próprio!

O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.

O Dantas nu é horroroso!

O Dantas cheira mal da boca!

Morra o Dantas, morra! Pim!

O Dantas é o escárnio da consciência!

Se o Dantas é português eu quero ser espanhol.

O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa! O

Dantas é a meta da decadência mental!

E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!

E ainda há quem lhe estenda a mão!


E quem lhe lave a roupa!

E quem tenha dó do Dantas!

E ainda há quem duvide de que o Dantas não vale nada, e não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero!

Vocês não sabem quem é soror Mariana do Dantas? Eu vou lhes contar:

A princípio por cartazes, entrevistas e outras preparações com as quais nada temos que ver, pensei tratar-se de Soror Mariana Alcoforado a pseudo autora daquelas cartas francesas que dois ilustres senhores desta terra não descansaram enquanto não estragaram pra português, quando subiu o pano também não fui capaz de distinguir porque era noite muito escura e só depois de meio acto é que descobri que era de madrugada porque o Bispo de Beja disse que tinha estado à espera do nascer do Sol!

A Mariana vem descendo uma escada estreitíssima mas não vem só, traz também o Chamilly que eu não cheguei a ver, ouvindo apenas uma voz muito conhecida aqui na Brasileira do Chiado pouco depois o Bispo de Beja é que me disse que ele trazia calções vermelhos.

A Mariana e o Chamilly estão sozinhos em cena, e às escuras dando a entender perfeitamente que fizeram indecências no quarto. Depois o ChamiIly, completamente satisfeito, despede-se e salta pela janela com grande mágoa da freira lacrimosa. E ainda os turistas têm ocasião de observar as grades arrombadas da janela do quinto andar do convento da Conceição de Beja na Rua do Touro, por onde se diz que fugiu célebre capitão de cavalos em Paris e dentista em Lisboa.

A Mariana que é histérica começa o chorar desatinadamente nos braços da sua confidente e excelente pau de cabeleira soror Inês.

...Vêm descendo pla dita estreitíssima escada (sic), várias Marianas todas iguais e de candeias acesas, menos uma que usa óculos e bengala e anda (sic) toda curvada prá frente o que quer dizer que é abadessa. E seria até uma excelente personificação das bruxas de Goya se quando falasse não tivesse aquela vos tão fresca e maviosa da tia Felicidade da vizinha do lado. E reparando nós dois vultos interroga espapaçadamente com cadência, austeridade e imensa falta de corda. Quem está aí? E de candeias apagadas?

- Foi o vento dizem as pobres inocentes varadas de terror... e a abadessa que só é velha nos óculos, na bengala e em andar curvada prá frente manda tocar a sineta que é dó d'alma a ouvi-la assim tão debilitada. Vão todas pró coro, mas eis que, de repente, batem no portão e sem se anunciar nem limpar-se da poeira, sobe a escada e entra plo salão um bispo de Beja que quando era novo fez brejeirices com a menina do chocolate.

Agora completamente emendado revela à abadessa que sabe por cartas que há homens que vão às mulheres do convento e que ainda ha pouco vira um de cavalos a saltar pla janela. A abadessa diz que efectivamente já há tempos que vinha dando pla falta de galinhas e tão inocentinha, coitada, que naqueles oitenta anos ainda não teve tempo pra descobrir a razão da humanidade estar dividida em homens e mulheres. Depois de sérios embaraços do Bispo é que ela deu com o atrevimento e mandou chamar as duas freiras de há pouco com as candeias apagadas. Nesta altura esta peça policial toma um pedaço d'interesse porque o bispo ora parece um polícia de investigação disfarçado em Bispo, ora um bispo com a falta de delicadeza de um policia d'investigação, e tão perspicaz que descobre em menos de um minuto o que o público já está farto de saber - que Mariana dormiu com o Noel.

O pior é que a Mariana foi à serra com as indiscrições do Bispo e desata a berrar, a berrar como quem se estava marimbando pra tudo aquilo. Esteve mesmo muito perto de se estrear com um par de murros na coroa do Bispo no que se mostrou de um atrevimento de uma insolência e de uma decisão refilona que excedeu todas as expectativas.

Ouve-se uma corneta tocar uma marcha de clarins e Mariana sentindo nas patas dos cavalos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr ate às grades da janela a gritar desalmadamente plo seu Noel. Grita assobia e repudia e pia e rasga-se e magoa-se e cai de costas com um acidente, do que já previamente tinha avisado o público e o pano também cai e o espectador também cai da paciência abaixo e desata numa destas pateadas tão enormes e tão monumentais que todos os jornais de Lisboa no dia seguinte foram unânimes naquele êxito teatral do Dantas.

A única consolação que os espectadores decentes tiveram foi a certeza de que aquilo não era a soror Mariana Alcoforado mas sim uma merdariana - aldantascufurado que tinha chiliques e exageros sexuais.

Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estatua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do "SÉCULO" a favor dos feridos da guerra, e a praça de Camões mudada em praça do Dr. Júlio Dantas, e com festas da Cidade plos aniversários, e sabonetes em conta "Júlio Dantas" e pastas Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas... E limonadas Dantas - Magnésia.

E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.

E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar.


Mas julgais que nisto se resume a literatura portuguesa? Não!

Mil vezes não!

Temos, além disto o Chianca que já fez rimas prá Aljubarrota que deixou de ser a derrota dos castelhanos pra ser a derrota do Chianca.

E as pinoquices de Vasco Mendonça Alves passadas no tempo da avozinha! E as infelicidades de Ramada Curto! E o talento insólito de Urbano Rodrigues! E as gaitadas do Brun! E as traduções só pra homem do ilustríssimo excelentíssimo senhor Mello Barreto! E o Frei Matta Nunes Moxo! E a Inês Sifilítica do Faustino! E as imbecilidades do Sousa Costa! E mais pedantices do Dantas! E Alberto Sousa, O Dantas do desenho! E os jornalistas do SÉCULO e da CAPITAL e do NOTÍCIAS e do PAÍS e do DIA e da NAÇÃO e da REPÚBLICA e da LUCTA e de todos, todos os jornais! E os actores de todos os teatros! E todos os pintores das Belas-Artes! E todos os artistas de Portugal que eu não gosto e os da ÁGUIA do Porto e os palermas de Coimbra! E a estupidez do Oldemiro César e o Dr. José de Figueredo amante do museu a AH OH os Sousa Pinto HU Hi e os burros de Cacilhas e os menus do Alfredo Guisado! E (o) raquítico Albino Forjaz de Sampaio, crítico da LUCTA a quem o Fialho com imensa piada intrujou de que tinha talento! E todos os que são políticos e artistas! E as exposições anuais das Belas-Arte(s)! E todas as maquetas do Marquês de Pombal! E as de Camões em Paris; e os Vaz, os Estrela, os Lacerda, os Lucena, os Rosa, os Costa, os Almeidas, os Camacho, os Cunha, os Carneiros, os Barros, os Silva, os Gomes, os velhos, os idiotas, os arranjistas, os impotentes, os celerados, os vendidos, os imbecis, os párias, os ascetas, os Lopes, os Peixotos, os Motta, os Godinho, os Teixeira, os Câmara, os diabo que os leve, os Constantino, os Tertuliano, os Grave, os Mantua, os Bahia, os Mendonça, os Brazão, os Matos, os Alves, os Albuquerques, os Sousas e todos os Dantas que houver por aí!!!!!!!!!

E as convicções urgentes do Homem Cristo Pai e as convicções catitas do Homem Cristo Filho!...

E os concertos do Blanch! E as estátuas ao leme, ao Eça e ao despertar e a tudo! E tudo o que seja Arte em Portugal! E tudo! Tudo por causa do Dantas!

Morra o Dantas, morra! Pim!

Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o mundo!

O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!

Morra o Dantas, morra! Pim!

Saturday, June 19, 2004

Do Suicídio

David Hume



Um benefício considerável que surge da filosofia consiste no antídoto soberano que esta fornece para a superstição e falsa religião. Todos os outros remédios para esta pestilenta doença são inúteis, ou pelo menos incertos. O simples bom senso e a experiência de vida, que são suficientes para a maior parte dos propósitos da vida, aqui revelam-se ineficazes: a história, bem como a experiência quotidiana, fornecem exemplos de homens dotados com a mais forte capacidade para negócios e afazeres que vivem escravizados pela maior superstição. Mesmo a graciosidade e a delicadeza de temperamento, que infunde um bálsamo em qualquer outra ferida, não fornece qualquer remédio para um veneno tão virulento, como se pode afirmar particularmente do belo sexo que, embora possua geralmente estas ricas dádivas da natureza, vê muitas das suas alegrias serem destruídas por este intruso inoportuno. Mas, logo que a sã filosofia se apodera da mente, a superstição é eficazmente excluída; e pode-se afirmar razoavelmente que o seu triunfo sobre este inimigo é mais completo que sobre a maior parte dos vícios e imperfeições próprios da natureza humana. O amor ou a ira, a ambição ou a avareza, têm a sua raiz no temperamento e nas afeições, coisas que a mais sã razão quase nunca é capaz de corrigir inteiramente; mas a superstição, estando baseada na falsa opinião, tem de cessar imediatamente quando a verdadeira filosofia inspira sentimentos mais justos de poderes superiores. Aqui a luta entre a doença e o remédio é mais equilibrada; e, a não ser que o segundo seja falso e enganador, nada o pode impedir de ser eficiente.

Seria aqui supérfluo exaltar os méritos da filosofia, expondo a tendência perniciosa do vício do qual esta cura a mente humana. O homem supersticioso, diz Túlio

[1], é miserável em qualquer situação, em qualquer incidente da vida. Mesmo o próprio sono, que bane todas as outras preocupações dos infelizes mortais, fornece-lhe matéria para novos terrores enquanto examina os seus sonhos e encontra nessas visões nocturnas presságios de futuras calamidades. Posso acrescentar que, embora só a morte possa pôr fim à sua miséria, ele não se atreve a procurar esse refúgio; prolonga uma existência miserável, pois tem um receio infundado de ofender o seu criador usando o poder com o qual esse ser beneficente o dotou. As dádivas de Deus e da Natureza são-nos arrebatadas por esta inimiga cruel; e, embora esse passo nos retirasse das regiões da dor e da mágoa, as suas ameaças ainda nos acorrentam a um ser odiado, que sobretudo ela própria contribui para tornar miserável.

Aqueles que foram reduzidos pelas calamidades da vida à necessidade de empregar este remédio fatal notam que, se a preocupação inoportuna dos seus amigos os priva daquela espécie de morte que propuseram a si próprios, raramente se aventuram a procurar qualquer outra ou conseguem reunir tanta determinação uma segunda vez, de modo a executar o seu propósito. O nosso horror à morte é tão grande que, quando esta se apresenta a um homem sob qualquer forma que não aquela com a qual ele se esforçou por reconciliar a sua imaginação, esta adquire novos terrores e supera a sua débil coragem. Mas, quando as ameaças da superstição se juntam a esta timidez natural, não é surpreendente que esta prive os homens de todo o poder sobre as suas vidas, pois mesmo muitos prazeres e deleites, aos quais somos conduzidos por uma forte propensão, são-nos arrancados por esta tirana desumana. Esforcemo-nos aqui por devolver o homem à sua liberdade nativa, examinando todos os argumentos comuns contra o suicídio e mostrando, de acordo com as opiniões de todos os filósofos antigos, que essa acção pode estar livre de qualquer imputação de culpa ou censura.


Se o suicídio é um crime, tem de ser uma transgressão do nosso dever em relação a Deus, aos nossos semelhantes ou a nós próprios.

De modo a provar que o suicídio não é qualquer transgressão do nosso dever em relação a Deus, as seguintes considerações talvez sejam suficientes. Para governar o mundo material, o criador todo-poderoso estabeleceu leis gerais e imutáveis, pelas quais todos os corpos, do maior planeta à menor partícula de matéria, são mantidos dentro da sua esfera e função próprias. Para governar o mundo animal, ele dotou todas as criaturas vivas com poderes corporais e mentais (com sentidos, paixões, apetites, memória e a capacidade de julgar), pelos quais elas são impelidas ou reguladas no curso da vida para que estão destinadas. Cada um destes dois princípios distintos do mundo material e animal invade continuamente a esfera do outro, e cada um retarda ou apressa a operação do outro. Os poderes do homem e de todos os outros animais estão restringidos e são controlados pela natureza e qualidades dos corpos circundantes; e as modificações e acções destes corpos são incessantemente alteradas pela operação de todos os animais. O homem é detido por rios na sua passagem pela superfície da Terra; e os rios, quando são apropriadamente controlados, emprestam a sua força ao movimento das máquinas, que estão ao serviço do homem. Mas, embora as províncias dos poderes materiais e animais não se mantenham inteiramente separadas, não resulta daí qualquer desacordo ou desordem na criação; pelo contrário, a partir da mistura, união e contraste de todos os diversos poderes dos corpos inanimados e das criaturas vivas, surge essa proporção e harmonia surpreendente que fornece o argumento mais seguro a favor da sabedoria suprema.

A providência da divindade não surge imediatamente em qualquer operação, governando todas as coisas através daquelas leis gerais e imutáveis que estão estabelecidas desde o início do tempo. Todos os acontecimentos, num certo sentido, podem ser manifestações da acção do todo-poderoso; todos procedem daqueles poderes com que ele dotou as suas criaturas. A ruína de uma casa destruída pelas mãos dos homens não resulta menos da sua providência que a ruína de uma casa que cai devido ao seu próprio peso, nem as faculdades humanas resultam menos do seu trabalho que as leis do movimento e da gravitação. Quando as paixões actuam, quando a capacidade de julgar decreta, quando os membros obedecem, estamos sempre perante a operação de Deus; e sobre estes princípios animados, bem como sobre os inanimados, ele estabeleceu o governo do universo.

Qualquer acontecimento tem a mesma importância aos olhos desse Ser infinito, que abarca num relance as regiões mais distantes do espaço e os períodos mais remotos do tempo. Não há qualquer acontecimento, por muito importante que seja para nós, que ele tenha dispensado das leis gerais que governam o universo, ou que tenha reservado singularmente para sua acção e operação imediatas. A revolução dos estados e impérios depende do menor capricho ou paixão de um único homem; e as vidas dos homens são encurtadas ou prolongadas pelo menor acidente do ar ou da dieta, da luz solar ou da tempestade. A natureza ainda mantém o seu progresso e operação; e, se alguma vez as leis gerais são violadas por volições particulares de Deus, isso dá-se de uma maneira que escapa inteiramente à observação humana. Assim como os elementos e outras partes inanimadas da criação desenvolvem a sua acção sem considerar a situação e o interesse particulares dos homens, também os homens estão entregues aos seus próprios juízos e critérios nos vários choques da matéria, e podem utilizar qualquer faculdade com que estejam dotados para providenciar o seu conforto, felicidade ou preservação.

Qual é então o sentido daquele princípio segundo o qual um homem que, cansado da vida e perseguido pela dor e pela miséria, supera com bravura todos os terrores naturais da morte, e realiza a sua fuga dessa situação cruel, segundo o qual um homem, dizia, incorreu na indignação do seu criador, intrometendo-se no ofício da providência divina e perturbando a ordem do universo? Afirmaremos que o todo-poderoso reservou para si próprio, de uma maneira peculiar, a disposição das vidas dos homens, e não submeteu esse acontecimento, como todos os outros, às leis gerais que governam o universo? Isto é claramente falso: as vidas dos homens dependem das mesmas leis que as vidas de todos os outros animais; e estas estão sujeitas às leis gerais da matéria e do movimento. A queda de uma torre ou a infusão de um veneno destruirão um homem da mesma maneira que a criatura mais desprezível; uma inundação varre sem distinção qualquer coisa que fique ao alcance da sua fúria. Por isso, como as vidas dos homens estão para sempre dependentes das leis gerais da matéria e do movimento, será um crime um homem dispor da sua vida por ser sempre um crime interferir nessas leis ou perturbar a sua operação? Mas isto parece absurdo: todos os animais estão entregues à sua própria prudência e aptidão para a sua conduta no mundo, e têm toda a autoridade, até onde vai o seu poder, para alterar as operações da natureza. Sem o exercício desta autoridade, não poderiam subsistir um só momento; qualquer acção, qualquer movimento de um homem, inova a ordem de algumas partes de matéria e desvia do seu curso comum as leis gerais do movimento. Deste modo, juntando estas conclusões descobrimos que a vida humana depende das leis gerais da matéria e do movimento, e que perturbar ou alterar essas leis gerais não é uma intromissão no ofício da providência: não terá cada uma destas afirmações como consequência a livre disposição da própria vida? E não poderá o homem utilizar legitimamente esse poder com que a natureza o dotou?

Para destruir a evidência desta conclusão, temos que apresentar uma razão que mostre por que este caso particular é uma excepção. Será por a vida humana ter uma importância tão grande que dispor dela é presunçoso para a prudência humana? Mas a vida de um homem não tem uma importância maior para o universo que a vida de uma ostra: e, se tiver uma importância tão grande, a verdade é que a ordem da natureza humana submeteu-a efectivamente à prudência humana e reduziu-nos a uma necessidade, em qualquer incidente, de decidir a seu respeito.

Se a disposição da vida humana estivesse tão reservada como a província peculiar do Todo-poderoso que seria uma intromissão nos seus direitos em relação aos homens estes disporem das suas vidas, seria tão criminoso agir para a preservação da vida como para a sua destruição. Se desvio uma pedra que vai cair na minha cabeça, perturbo o curso da natureza e invado a província peculiar do Todo-poderoso, dilatando a minha vida para além do período que, pelas leis gerais da matéria e do movimento, ele lhe atribuiu.

Um cabelo, uma mosca ou um insecto é capaz de destruir este ser poderoso cuja vida é tão importante. Será absurdo supor que a prudência humana pode dispor legitimamente daquilo que depende de tais causas insignificantes? Não seria um crime eu desviar o Nilo ou o Danúbio, se eu fosse capaz de realizar esses propósitos. Onde está então o crime de desviar algumas onças de sangue dos meus canais naturais!

Imaginais que eu me queixo da providência, ou amaldiçoo a minha criação, por ter saído da vida e posto fim a um ser que, se continuasse a existir, tornar-me-ia miserável? Tais sentimentos estão longe de mim. Só estou convencido de uma questão de facto que vós próprios considerais possível: que a vida humana pode ser infeliz, e que a minha existência, caso se prolongasse mais, tornar-se-ia inaceitável. Mas eu agradeço à providência, tanto pelo bem de que já desfrutei como pelo poder de que estou dotado para escapar aos males que me ameaçam.

[2] Só podem queixar-se da providência aqueles que tolamente imaginam não ter tal poder, e precisam de prolongar uma vida detestada, apesar de carregada de dor e de doença, de vergonha e de pobreza.

Não ensinais que quando algum mal me sucede, mesmo que resulte da malícia dos meus inimigos, devo resignar-me à providência, e que as acções dos homens, tal como as acções dos seres inanimados, são operações do Todo-poderoso? Assim, quando caio sobre a minha espada recebo a minha morte igualmente das mãos da divindade, como se esta tivesse resultado de um leão, de um precipício ou de uma febre.

A submissão à providência que exigis em qualquer calamidade que me suceda não exclui a perícia e a diligência humanas, se possivelmente através delas puder evitar ou fugir à calamidade. E porque não poderei utilizar tanto um remédio como o outro?

Se a minha vida não fosse minha, seria para mim um crime colocá-la em perigo, bem como dispor dela; e não mereceria ser chamado herói um homem a quem a glória ou a amizade transportasse para os maiores perigos; e outro, que pusesse fim à sua vida por motivos iguais ou semelhantes, mereceria ser acusado de desprezível ou infame.

Não há qualquer ser que possua qualquer poder ou faculdade que não tenha recebido do seu criador; nem há qualquer ser que possa alguma vez, através de uma acção tão irregular, intrometer-se no plano da sua providência ou quebrar a ordem do universo. As operações de um ser são obra do seu criador, tal como a cadeia de eventos que ele invade; e, seja qual for o princípio que prevaleça, podemos concluir por essa mesma razão que esse será aquele que o criador mais favorece. Seja esse ser animado ou inanimado, racional ou irracional, a situação é sempre a mesma: o seu poder ainda deriva do criador supremo, e está abrangido do mesmo modo na ordem da sua providência. Quando o horror à dor prevalece sobre o amor à vida, quando uma acção voluntária antecipa os efeitos de causas cegas, isso só ocorre em consequência daqueles poderes e princípios que ele implantou nas suas criaturas. A providência divina permanece inviolada, situada muito para além do alcance das injúrias humanas.

[3]

É ímpio, diz a velha superstição romana, desviar os rios do seu curso ou invadir as prerrogativas da natureza. É ímpio, diz a superstição francesa, inocularmo-nos contra a varíola ou intrometermo-nos nos assuntos da providência, produzindo voluntariamente doenças e enfermidades. É ímpio, diz a moderna superstição europeia, pormos fim à nossa própria vida, e revoltarmo-nos desse modo contra o nosso criador. E porque não há-de ser ímpio, digo eu, construir casas, cultivar o solo ou navegar no oceano? Em todas estas acções utilizamos os nosso poderes da mente e do corpo para produzir alguma inovação no curso da natureza, e em nenhuma delas fazemos mais do que isso. Por isso, todas elas são igualmente inocentes ou igualmente criminosas.

Mas estás colocado pela providência num posto particular, como uma sentinela; e, quando o abandonas sem ser chamado, és igualmente culpado de rebelião contra o teu Soberano Todo-poderoso e incorres no seu desagrado. Pergunto: porque concluís que a providência me colocou neste posto? Pela minha parte, constato que devo o meu nascimento a uma longa cadeia de causas, das quais muitas dependeram de acções voluntárias dos homens. Mas a providência guiou todas essas causas, e nada ocorre no universo sem o seu consentimento e cooperação. Se é assim, então também a minha morte, mesmo que seja voluntária, não ocorre sem o seu consentimento; e sempre que a dor ou a mágoa ultrapassam tanto a minha paciência que me fazem ficar cansado da vida, posso concluir que sou chamado do meu posto nos termos mais claros e explícitos.


Foi certamente a providência que me colocou neste presente momento neste quarto: mas não poderei deixá-lo quando considerar apropriado sem estar sujeito à imputação de ter abandonado o meu posto ou posição? Quando estiver morto, os princípios de que sou composto continuarão a desempenhar o seu papel no universo, e serão tão úteis na grande fábrica como o eram quando compunham esta criatura individual. A diferença para o todo não será maior que a diferença entre eu estar num quarto e estar ao ar livre. A primeira mudança tem mais importância para mim do que a outra, mas não tem mais importância para o universo.

É uma espécie de blasfémia imaginar que qualquer ser criado pode perturbar a ordem do mundo ou invadir os assuntos da providência! Isso supõe que esse ser possui poderes e faculdades que não recebeu do seu criador, e que não estão subordinados ao seu governo e autoridade. Um homem pode perturbar a sociedade, sem dúvida, e incorrer dessa maneira no desagrado do todo-poderoso, mas o governo do mundo está situado muito para além do seu alcance e violência. E como se revela o desagrado do todo-poderoso em relação àquelas acções que perturbam a sociedade? Através de princípios que ele implantou na natureza humana, e que nos inspiram um sentimento de remorso se nós próprios tivermos sido culpados de tais acções, bem como o sentimento de censura e reprovação se alguma vez as observarmos noutros. Examinemos agora, de acordo com o método proposto, se o suicídio é uma acção desse tipo e constitui uma violação do nosso dever em relação ao nosso próximo e à sociedade.

Um homem que se retira da vida não faz qualquer mal à sociedade: só deixa de fazer bem, o que, se é uma injúria, é do género menos grave.

Todas as nossas obrigações de fazer bem à sociedade parecem implicar algo recíproco. Recebo os benefícios da sociedade, e por isso devo promover os seus interesses; mas será que quando me retiro da sociedade posso ficar vinculado por mais tempo?

Mas, mesmo admitindo que as nossas obrigações de fazer o bem são perpétuas, elas têm certamente alguns limites; não estou obrigado a fazer um pequeno bem à sociedade à custa de um grande mal para mim próprio. Por que deverei então prolongar uma existência miserável devido a algum benefício frívolo que o público possa talvez receber de mim? Se por causa da idade e de enfermidades posso abandonar legitimamente qualquer profissão, utilizar todo o meu tempo na luta contra essas calamidades e aliviar tanto quanto possível as misérias da minha vida futura, por que não poderei acabar de uma vez com essas misérias através de uma acção que não é mais prejudicial para a sociedade?

Mas suponha-se que já não está no meu poder promover o interesse do público, suponha-se que sou um fardo para ele, suponha-se que a minha vida impede alguma pessoa de ser muito mais útil para o público: em tais casos, o meu abandono da vida tem de ser não só inocente, mas louvável. E a maior parte das pessoas que permanecem sob qualquer tentação de abandonar a existência estão em alguma situação desse género; aqueles que têm saúde, poder ou autoridade têm geralmente melhores razões para estar em paz com o mundo.

Um homem está envolvido numa conspiração a favor do interesse público, está preso sob suspeita, ameaçado com a tortura, e em virtude da sua fraqueza sabe que o segredo ser-lhe-á extorquido. Poderá alguém assim atender melhor ao interesse público do que pondo um fim rápido a uma vida miserável? Este foi o caso do famoso e bravo Strozzi de Florença.

Além disso, suponha-se que um malfeitor é condenado justamente a uma morte vergonhosa. Poder-se-á imaginar alguma razão para que ele não possa antecipar o seu castigo, e salvar-se de toda a angústia de pensar nas suas terríveis aproximações? Ele não invade mais os assuntos da providência que o magistrado que ordenou a sua execução; e a sua morte voluntária é igualmente vantajosa para a sociedade, que assim se vê livre de um membro pernicioso.

Quem admite que a idade, a doença ou o infortúnio podem transformar a vida num fardo, e torná-la ainda pior que a aniquilação, não pode questionar que o suicídio pode muitas vezes ser consistente com o nosso interesse e com o dever que temos em relação a nós próprios. Acredito que nunca nenhum homem deitou fora a vida enquanto valia a pena mantê-la, pois tal é o nosso horror natural à morte que pequenos motivos nunca serão capazes de nos reconciliar com ela; e embora talvez a situação da saúde ou fortuna de um homem não tenham parecido exigir este remédio, podemos pelo menos estar seguros de que qualquer um que, sem razão aparente, tenha recorrido a ele, estava amaldiçoado com uma depravação ou melancolia de temperamento de tal maneira incurável que tinha de envenenar todo o prazer, e torná-lo igualmente miserável como se estivesse estado tão carregado com o mais doloroso infortúnio.

Se se supõe que o suicídio é um crime, só a cobardia pode impelir-nos para ele. Se não é um crime, tanto a prudência como a coragem devem levar-nos a livrar-nos de vez da existência quando esta se torna um fardo. É só dessa maneira que, então, poderemos ser úteis à sociedade, dando um exemplo que, se fosse imitado, faria qualquer um mantiver a hipótese de ter felicidade na vida e libertá-lo-ia eficazmente de todo o perigo ou miséria.



[1] De Divin. Lib. ii. 72. 150.

[2] Agamus Deo gratias, quod nemo in vita teneri potest. Séneca, Epist. 12.

[3] Tácito, Ann. lib. i. 79.

[4] Seria fácil provar que o suicídio é tão legítimo sob a revelação cristã como o era para os pagãos. Não há um único texto da sagrada escritura que o proíba. A grande e infalível regra de fé e prática que tem de controlar toda a filosofia e raciocínio humanos, deixou-nos neste caso entregues à nossa liberdade natural. De facto, a resignação à Providência é recomendada na sagrada escritura, mas implica submissão só aos males inevitáveis, não àqueles que podem ser remediados através da prudência ou da coragem. Não matarás pretende evidentemente excluir apenas o acto de matar aqueles sobre cujas vidas não temos qualquer autoridade. A prática dos magistrados, que condenam criminosos à morte apesar da letra da lei, mostra claramente que este preceito, tal como a maior parte dos preceitos da sagrada escritura, tem de ser modificado pela razão e pelo senso comum. Mesmo que este mandamento condenasse o suicídio, não teria agora qualquer autoridade, pois toda a lei de Moisés foi abolida excepto na medida em que é estabalecida pela lei da Natureza. E já nos esforçámos por provar que essa lei não proíbe o suicídio. Em todos os casos os cristãos e os pagãos estão precisamente no mesmo nível: Catão e Bruto, Árria e Portia, agiram heroicamente; aqueles que agora imitarem o seu exemplo devem receber os mesmos louvores da posteridade. O poder de cometer suicídio é visto por Plínio como uma vantagem que os homens possuem mesmo em relação à própria Divindade. «Deus non sibi potest mortem consciscere si velit, quod homini dedit optimum in tantis vitæ pœnis.»





(Tradução: Pedro Galvão, 2002)



Pilhado da Trólei – Revista de Filosofia Moral e Política, que está aqui.