Tuesday, March 22, 2005

A Minha Certidão

João César Monteiro
Nasci aos 2 de Fevereiro de 1939, na Figueira da Foz.
Tive infância caprichosa e bem nutrida, no seio de uma família fortemente dominada pelo espirito, chamemos-lhe assim, da 1 ª República. Escusado será dizer que abundavam os dichotes anti-clericais, muito embora o meu pai desejasse que eu viesse a seguir a carreira eclesiástica. Em suma: não se percebia nada. Pelo menos à primeira vista.
Por volta dos 16 anos, fixei-me com a família em Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal. Instalado no colégio do dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair perigosíssima doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as fraquezas da carne devia existir qualquer obscena incompatibilidade e nunca mais fui visto na companhia de políticos.
Tendo finalmente conseguido dissipar toda a fortuna na satisfação de brutais apetites, o meu garboso pai veio a falecer vitimado por cruel ataque cardíaco, deixando-me, perplexo e sem um chavo, a coçar a cabeça. Era chegada a hora de dar o corpinho ao manifesto, como a maior parte das pessoas. Filho que era de meu pai, atravessei senhorialmente muitos e variados empregos, mas em breve me apercebi que já não podia olhar o mundo da mesma maneira. Fui até Paris para ensaiar até onde me era possível ir. Não me era possível ir muito longe. Meses depois, «ayant connu pas mal de choses», era repatriado.
Em 1960, encontrei o Sr. Seixas Santos que teve a bondade de me ensinar um pouco do muito que sabe de cinema. O Sr. Vasconcelos andava ao mesmo e parecia fazer progressos que, infelizmente (para ele), o futuro ainda não comprovou.
No ano seguinte, trabalhei como assistente de realização do Sr. Perdigão Queiroga e admito que poderia ter aprendido mais qualquercoisinha se não tivesse sido tão presunçoso.
Em 1963, na injusta qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gu1benkian, parti para Londres e fim de frequentar a London School of Film Technique. Suponho que nunca por aquela escola passou aluno tão mau, mas nesse passo não tive grandes culpas no cartório: é que de facto os ingleses não nasceram para o cinema. Aliás, ainda não percebi muito bem para que é que os ingleses nasceram. Deve com certeza ser pela mesma razão que nasceram os percevejos, as baratas e o pão integral, vulgo pão que o diabo amassou. A estadia em Londres, essa foi extremamente divertida, sobretudo no salutar plano das doces amizades; contudo, no regresso à Pátria, o meu pavoroso aproveitamento escolar foi muito sentido, como vergonhosa acção, por provincianas carpideiras a quem nunca passará pelas cabeças, tão chorosas dos mal gastos dinheirinhos da Gulbenkian, que a estupidez e e incompetência assentam arraiais em qualquer parte do mundo, inclusive no coração de Londres, sob o pomposo nome de London School of Film Technique.
Em 1965, conheci o Paulo Rocha e os seus «Verdes Anos», o Fernando Lopes e o seu «Belarmino». Tomei-me de amizade pelo Fernando e de amores pelo filme do senhor Rocha, cujos hábitos de anacoreta o tornavam pouco acessível.
Nesse mesmo ano, tentei pôr de pé um projecto de filme em 16 m/m, intitulado «Quem espera por sapatos de defunto morre descalços». Dois dias de filmagens e rabinho entre as pernas. Falta de xis. Esse ano negro não findaria, no entanto, sem que deixasse a meio o primeiro filme publicitário que me enfiaram nas unhas: de como, graças ao Não-sei-quê, fazer desaparecer em três penadas o mau cheiro do sovaco, e me internassem num hospício para acalmar as febres.
De novo na vida civil, os meus excessos ultra-românticos, temperados pela mais nobre profundidade sentimental, tiveram enfim (ai filhas de Sidon) a justa consagração, o que não me livrou de amouchar durante um ano, como escriba de Filmes Castello Lopes, Lda.
Em 1968, após um reconfortante período em que descobri que mães há muitas e pai só um, o celeste, dei mostras de, para além do instinto de conservação, possuir muitos outros bons instintos e fui finalmente recomendado ao produtor Ricardo Malheiro. Foi, pois, na mais desregrada euforia que fiz o filmezinho sobre Dona Sophia. Pouco tempo volvido (ó desgraça!), o Malheiro ia à falência ou, o que vinha a dar ao mesmo, a falência ia ao Malheiro. Sem grande proveito, tentei ainda a publicidade. Desesperadamente. Três ou quatro filmes, uma viagem, hélas! à Guiné, e disse.
No ano seguinte, estimulado por algumas boas vontades (saudades), resolvi repegar no projecto «Quem espera por sapatos de defunto morre descalço», cujas filmagens se arrastaram ao longo de dois anos. Numa altura em que eu já deitava o filme pelos olhos, a Fundação Gu1benkian concedeu-me (obrigadinho) um subsidio de $$$$$$$$$$$$$$$$... 180 contos, divididos em 3 prestações. Aqui, tive a tentação de dar uma volta. Pedi ao Vasconcelos para filmar dois planos que faltavam ainda ao filme, e fui. Itália e a inevitável Paris. Esgotada a finança, voltei para acabar o filme, receber a última prestação e partir outra vez, ora de comboio, ora à boleia, consoante a inspiração: Barcelona, Marselha, Florença, Milão, Como, Cernobbio, Paris.
Entretanto, o filme começou por ser relativamente mal recebido junto do Mecenas (quereriam ópera por 180 contos?), continuou, pateado num festival no Sul de Espanha e foi friamente acolhido pelos críticos presentes em Nice, aquando da chamada Semaine du Jeune Cinéma Portugais. Foi pena, porque me teria dado jeito, sobretudo no que toca à fruição de algumas benesses locais, mas já que não pôde ser, paciência! Tirando isso, aproveitei a estadia niceoise para comprar um lindo fato de banho de duas peças com a nota de 100 francos que o João Bénard me emprestou e ameacei partir uma garrafa de tinto na cabeça do Cunha Teles que, impensadamente, me chamou oportunista. Não sou uma natureza agressiva, antes pelo contrário, mas ser insultado por um manhoso negociante é coisa que me põe fora de mim. Detesto a promiscuidade e ensinaram-me a guardar escrupulosamente as distâncias. Por uma única e bem simples exigência: a de manter intacta e intocada e minha pessoa, para além da consciência de todos os meus erros e imperfeições. Levo, as mais das vezes, esta fantochada com o riso no costado, mas não é por acaso que, cada vez mais, me dou com menos pessoas.
Arrumados definitivamente os «Sapatos» iniciei, no Verão passado, «A Sagrada Família», que espero terminar por um destes dias. Presumo que não lhe estará reservada melhor sorte que a do filme anterior, mas devo confessar que a considero uma experiência relativamente importante, se não, e com certeza que não, no plano global de um cinema português, pelo menos, no plano particular do meu próprio cinema e na exacta medida em que, por um lado, discute e corrige dialècticamente o filme anterior e, por outro, prepara já o filme seguinte.
O filme seguinte chama-se «A Tempestade», baseia-se no poema dramático de Shakespeare e na ópera de Purcell e será perpetrado numa Arrábida pintada a Robbialac se, como se espera, a edilidade local não levantar intransponíveis obstáculos. Quanto mais não seja, há que atender aos relevantes serviços que a prestimosa tinta, que é só a que mais pinta e que mais dura, tem prestado ao colorido da Nação.
Que pensar de tudo isto? Em primeiro lugar, que a vida está má para os pobres. Depois que, nisto ou naquilo, vivemos todos muito ocupados, inclusive na falta de ocupação. Por último, que enquanto, pela parte que me toca, passo o tempo, como agora e aqui, a acariciar o meu dilatado egozinho e a fornecer de mim imagens razoavelmente aliciantes, como estas, existem pessoas bem mais obscuras que, discreta e devotadamente se vão ocupando de mim e do meu glorioso destino o que, aliás, não é novo. Parece que tem sido uma constante da História.
Assim sendo, resta-me reconhecer a solidão moral de uma prática cinematográfica cavada na dupla recusa de ser uma espécie de carro de aluguer da classe mais favorecida e, o que é mais grave, de trocar essa profunda exigência por toda e qualquer forma de demagogia neo-fadista que transporte e venda a miserável ilusão de servir outra coisa.

Texto auto-biográfico pilhado à revista & ETC (Nº8, 30/Abril/1973)

Saturday, March 5, 2005

Auto da Barca do Inferno

Gil Vicente

Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.
Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.



O primeiro intrelocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e üa cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha.

DIABO À barca, à barca, houlá!
que temos gentil maré!
- Ora venha o carro a ré!
COMPANHEIRO Feito, feito!
Bem está!
Vai tu muitieramá,
e atesa aquele palanco
e despeja aquele banco,
pera a gente que virá.

À barca, à barca, hu-u!
Asinha, que se quer ir!
Oh, que tempo de partir,
louvores a Berzebu!
- Ora, sus! que fazes tu?
Despeja todo esse leito!
COMPANHEIRO Em boa hora! Feito, feito!
DIABO Abaixa aramá esse cu!

Faze aquela poja lesta
e alija aquela driça.
COMPANHEIRO Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!
DIABO Oh, que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
- Ó poderoso dom Anrique,
cá vindes vós?... Que cousa é esta?...

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

FIDALGO Esta barca onde vai ora,
que assi está apercebida?
DIABO Vai pera a ilha perdida,
e há-de partir logo ess'ora.
FIDALGO Pera lá vai a senhora?
DIABO Senhor, a vosso serviço.
FIDALGO Parece-me isso cortiço...
DIABO Porque a vedes lá de fora.

FIDALGO Porém, a que terra passais?
DIABO Pera o inferno, senhor.
FIDALGO Terra é bem sem-sabor.
DIABO Quê?... E também cá zombais?
FIDALGO E passageiros achais
pera tal habitação?
DIABO Vejo-vos eu em feição
pera ir ao nosso cais...

FIDALGO Parece-te a ti assi!...
DIABO Em que esperas ter guarida?
FIDALGO Que leixo na outra vida
quem reze sempre por mi.
DIABO Quem reze sempre por ti?!..
Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...
E tu viveste a teu prazer,
cuidando cá guarecer
por que rezam lá por ti?!...

Embarca - ou embarcai...
que haveis de ir à derradeira!
Mandai meter a cadeira,
que assi passou vosso pai.
FIDALGO Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?!
DIABO Vai ou vem! Embarcai prestes!
Segundo lá escolhestes,
assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes,
haveis de passar o rio.
FIDALGO Não há aqui outro navio?
DIABO Não, senhor, que este fretastes,
e primeiro que expirastes
me destes logo sinal.
FIDALGO Que sinal foi esse tal?
DIABO Do que vós vos contentastes.

FIDALGO A estoutra barca me vou.
Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Houlá! Hou!...
(Pardeus, aviado estou!
Cant'a isto é já pior...)
Oue jericocins, salvanor!
Cuidam cá que são eu grou?

ANJO Que quereis?
FIDALGO Que me digais,
pois parti tão sem aviso,
se a barca do Paraíso
é esta em que navegais.
ANJO Esta é; que demandais?
FIDALGO Que me leixeis embarcar.
Sou fidalgo de solar,
é bem que me recolhais.

ANJO Não se embarca tirania
neste batel divinal.
FIDALGO Não sei porque haveis por mal
que entre a minha senhoria...
ANJO Pera vossa fantesia
mui estreita é esta barca.
FIDALGO Pera senhor de tal marca
nom há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!
ANJO Não vindes vós de maneira
pera entrar neste navio.
Essoutro vai mais vazio:
a cadeira entrará
e o rabo caberá
e todo vosso senhorio.

Ireis lá mais espaçoso,
vós e vossa senhoria,
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso.
E porque, de generoso,
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso.

DIABO À barca, à barca, senhores!
Oh! que maré tão de prata!
Um ventozinho que mata
e valentes remadores!

Diz, cantando:

Vós me veniredes a la mano,
a la mano me veniredes.

FIDALGO Ao Inferno, todavia!
Inferno há i pera mi?
Oh triste! Enquanto vivi
não cuidei que o i havia:
Tive que era fantesia!
Folgava ser adorado,
confiei em meu estado
e não vi que me perdia.

Venha essa prancha! Veremos
esta barca de tristura.
DIABO Embarque vossa doçura,
que cá nos entenderemos...
Tomarês um par de remos,
veremos como remais,
e, chegando ao nosso cais,
todos bem vos serviremos.

FIDALGO Esperar-me-ês vós aqui,
tornarei à outra vida
ver minha dama querida
que se quer matar por mi.
Dia, Que se quer matar por ti?!...
FIDALGO Isto bem certo o sei eu.
DIABO Ó namorado sandeu,
o maior que nunca vi!...

FIDALGO Como pod'rá isso ser,
que m'escrevia mil dias?
DIABO Quantas mentiras que lias,
e tu... morto de prazer!...
FIDALGO Pera que é escarnecer,
quem nom havia mais no bem?
DIABO Assi vivas tu, amém,
como te tinha querer!

FIDALGO Isto quanto ao que eu conheço...
DIABO Pois estando tu expirando,
se estava ela requebrando
com outro de menos preço.
FIDALGO Dá-me licença, te peço,
que vá ver minha mulher.
DIABO E ela, por não te ver,
despenhar-se-á dum cabeço!

Quanto ela hoje rezou,
antre seus gritos e gritas,
foi dar graças infinitas
a quem a desassombrou.
FIDALGO Cant'a ela, bem chorou!
DIABO Nom há i choro de alegria?..
FIDALGO E as lástimas que dezia?
DIABO Sua mãe lhas ensinou...

Entrai, meu senhor, entrai:
Ei la prancha! Ponde o pé...
FIDALGO Entremos, pois que assi é.
DIABO Ora, senhor, descansai,
passeai e suspirai.
Em tanto virá mais gente.
FIDALGO Ó barca, como és ardente!
Maldito quem em ti vai!

Diz o Diabo ao Moço da cadeira:

DIABO Nom entras cá! Vai-te d'i!
A cadeira é cá sobeja;
cousa que esteve na igreja
nom se há-de embarcar aqui.
Cá lha darão de marfi,
marchetada de dolores,
com tais modos de lavores,
que estará fora de si...

À barca, à barca, boa gente,
que queremos dar à vela!
Chegar ela! Chegar ela!
Muitos e de boamente!
Oh! que barca tão valente!

Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:

ONZENEIRO Pera onde caminhais?
DIABO Oh! que má-hora venhais,
onzeneiro, meu parente!

Como tardastes vós tanto?
ONZENEIRO Mais quisera eu lá tardar...
Na safra do apanhar
me deu Saturno quebranto.
DIABO Ora mui muito m'espanto
nom vos livrar o dinheiro!...
ONZENEIRO Solamente para o barqueiro
nom me leixaram nem tanto...

DIABO Ora entrai, entrai aqui!
ONZENEIRO Não hei eu i d'embarcar!
DIABO Oh! que gentil recear,
e que cousas pera mi!...
ONZENEIRO Ainda agora faleci,
leixa-me buscar batel!
DIABO Pesar de Jam Pimentel!
Porque não irás aqui?...

ONZENEIRO E pera onde é a viagem?
DIABO Pera onde tu hás-de ir.
ONZENEIRO Havemos logo de partir?
DIABO Não cures de mais linguagem.
ONZENEIRO Mas pera onde é a passagem?
DIABO Pera a infernal comarca.
ONZENEIRO Dix! Nom vou eu tal barca.
Estoutra tem avantagem.

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

Hou da barca! Houlá! Hou!
Haveis logo de partir?
ANJO E onde queres tu ir?
ONZENEIRO Eu pera o Paraíso vou.
ANJO Pois cant'eu mui fora estou
de te levar para lá.
Essoutra te levará;
vai pera quem te enganou!

ONZENEIRO Porquê?
ANJO Porque esse bolsão
tomará todo o navio.
ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio!
ANJO Não já no teu coração.
ONZENEIRO Lá me fica, de rondão,
minha fazenda e alhea.
ANJO Ó onzena, como és fea
e filha de maldição!

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:

ONZENEIRO Houlá! Hou! Demo barqueiro!
Sabês vós no que me fundo?
Quero lá tornar ao mundo
e trazer o meu dinheiro.
que aqueloutro marinheiro,
porque me vê vir sem nada,
dá-me tanta borregada
como arrais lá do Barreiro.

DIABO Entra, entra, e remarás!
Nom percamos mais maré!
ONZENEIRO Todavia...
DIABO Per força é!
Que te pês, cá entrarás!
Irás servir Satanás,
pois que sempre te ajudou.
ONZENEIRO Oh! Triste, quem me cegou?
DIABO Cal'te, que cá chorarás.

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando o barrete:

ONZENEIRO Santa Joana de Valdês!
Cá é vossa senhoria?
FIDALGO Dá ò demo a cortesia!
DIABO Ouvis? Falai vós cortês!
Vós, fidalgo, cuidareis
que estais na vossa pousada?
Dar-vos-ei tanta pancada
com um remo que renegueis!

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

PARVO Hou daquesta!
DIABO Quem é?
PARVO Eu soo.
É esta a naviarra nossa?
DIABO De quem?
PARVO Dos tolos.
DIABO Vossa.
Entra!
PARVO De pulo ou de voo?
Hou! Pesar de meu avô!
Soma, vim adoecer
e fui má-hora morrer,
e nela, pera mi só.
DIABO De que morreste?
PARVO De quê?
Samicas de caganeira.
DIABO De quê?
PARVO De caga merdeira!
Má rabugem que te dê!
DIABO Entra! Põe aqui o pé!
PARVO Houlá! Nom tombe o zambuco!
DIABO Entra, tolaço eunuco,
que se nos vai a maré!

PARVO Aguardai, aguardai, houlá!
E onde havemos nós d'ir ter?
DIABO Ao porto de Lucifer.
PARVO Ha-á-a...
DIABO Ó Inferno! Entra cá!
PARVO Ò Inferno?... Eramá...
Hiu! Hiu! Barca do cornudo.
Pêro Vinagre, beiçudo,
rachador d'Alverca, huhá!
Sapateiro da Candosa!
Antrecosto de carrapato!
Hiu! Hiu! Caga no sapato,
filho da grande aleivosa!
Tua mulher é tinhosa
e há-de parir um sapo
chantado no guardanapo!
Neto de cagarrinhosa!

Furta cebolas! Hiu! Hiu!
Excomungado nas erguejas!
Burrela, cornudo sejas!
Toma o pão que te caiu!
A mulher que te fugiu
per'a Ilha da Madeira!
Cornudo atá mangueira,
toma o pão que te caiu!

Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!
Dê-dê! Pica nàquela!
Hump! Hump! Caga na vela!
Hio, cabeça de grulha!
Perna de cigarra velha,
caganita de coelha,
pelourinho da Pampulha!
Mija n'agulha, mija n'agulha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz:

PARVO Hou da barca!
ANJO Que me queres?
PARVO Queres-me passar além?
ANJO Quem és tu?
PARVO Samica alguém.
ANJO Tu passarás, se quiseres;
porque em todos teus fazeres
per malícia nom erraste.
Tua simpreza t'abaste
pera gozar dos prazeres.

Espera entanto per i:
veremos se vem alguém,
merecedor de tal bem,
que deva de entrar aqui.

Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao batel infernal, e diz:

SAPATEIRO Hou da barca!
DIABO Quem vem i?
Santo sapateiro honrado,
como vens tão carregado?...
SAPATEIRO Mandaram-me vir assi...

E pera onde é a viagem?
DIABO Pera o lago dos danados.
SAPATEIRO Os que morrem confessados
onde têm sua passagem?
DIABO Nom cures de mais linguagem!
Esta é a tua barca, esta!
SAPATEIRO Renegaria eu da festa
e da puta da barcagem!

Como poderá isso ser,
confessado e comungado?!...
DIABO Tu morreste excomungado:
Nom o quiseste dizer.
Esperavas de viver,
calaste dous mil enganos...
Tu roubaste bem trint'anos
o povo com teu mester.

Embarca, eramá pera ti,
que há já muito que t'espero!
SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero!
DIABO Que te pês, hás-de ir, si, si!
SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi,
nom me hão elas de prestar?
DIABO Ouvir missa, então roubar,
é caminho per'aqui.

SAPATEIRO E as ofertas que darão?
E as horas dos finados?
DIABO E os dinheiros mal levados,
que foi da satisfação?
SAPATEIRO Ah! Nom praza ò cordovão,
nem à puta da badana,
se é esta boa traquitana
em que se vê Jan Antão!

Ora juro a Deus que é graça!

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

Hou da santa caravela,
poderês levar-me nela?
ANJO A cárrega t'embaraça.
SAPATEIRO Nom há mercê que me Deus faça?
Isto uxiquer irá.
ANJO Essa barca que lá está
Leva quem rouba de praça.

Oh! almas embaraçadas!
SAPATEIRO Ora eu me maravilho
haverdes por grão peguilho
quatro forminhas cagadas
que podem bem ir i chantadas
num cantinho desse leito!
ANJO Se tu viveras dereito,
Elas foram cá escusadas.

SAPATEIRO Assi que determinais
que vá cozer ò Inferno?
ANJO Escrito estás no caderno
das ementas infernais.

Torna-se à barca dos danados, e diz:

SAPATEIRO Hou barqueiros! Que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo
e levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!

Vem um Frade com üa Moça pela mão, e um broquel e üa espada na outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:

FRADE Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;
ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã:
tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!
DIABO Que é isso, padre?! Que vai lá?
FRADE Deo gratias! Som cortesão.
DIABO Sabês também o tordião?
FRADE Porque não? Como ora sei!
DIABO Pois entrai! Eu tangerei
e faremos um serão.

Essa dama é ela vossa?
FRADE Por minha la tenho eu,
e sempre a tive de meu,
DIABO Fezestes bem, que é fermosa!
E não vos punham lá grosa
no vosso convento santo?
FRADE E eles fazem outro tanto!
DIABO Que cousa tão preciosa...

Entrai, padre reverendo!
FRADE Para onde levais gente?
DIABO Pera aquele fogo ardente
que nom temestes vivendo.
FRADE Juro a Deus que nom t'entendo!
E este hábito no me val?
DIABO Gentil padre mundanal,
a Berzebu vos encomendo!

FRADE Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesu Cristo,
que eu nom posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!...
Um padre tão namorado
e tanto dado à virtude?
Assi Deus me dê saúde,
que eu estou maravilhado!

DIABO Não curês de mais detença.
Embarcai e partiremos:
tomareis um par de ramos.
FRADE Nom ficou isso n'avença.
DIABO Pois dada está já a sentença!
FRADE Pardeus! Essa seria ela!
Não vai em tal caravela
minha senhora Florença.

Como? Por ser namorado
e folgar com üa mulher
se há um frade de perder,
com tanto salmo rezado?!...
DIABO Ora estás bem aviado!
FRADE Mais estás bem corregido!
DIABO Dovoto padre marido,
haveis de ser cá pingado...

Descobriu o Frade a cabeça, tirando o capelo; e apareceu o casco, e diz o Frade:

FRADE Mantenha Deus esta c'oroa!
DIABO ó padre Frei Capacete!
Cuidei que tínheis barrete...
FRADE Sabê que fui da pessoa!
Esta espada é roloa
e este broquel, rolão.
DIABO Dê Vossa Reverença lição
d'esgrima, que é cousa boa!

Começou o frade a dar lição d'esgrima com a espada e broquel, que eram d'esgrimir, e diz desta maneira:

FRADE Deo gratias! Demos caçada!
Pera sempre contra sus!
Um fendente! Ora sus!
Esta é a primeira levada.
Alto! Levantai a espada!
Talho largo, e um revés!
E logo colher os pés,
que todo o al no é nada!

Quando o recolher se tarda
o ferir nom é prudente.
Ora, sus! Mui largamente,
cortai na segunda guarda!
- Guarde-me Deus d'espingarda
mais de homem denodado.
Aqui estou tão bem guardado
como a palhá n'albarda.

Saio com meia espada...
Hou lá! Guardai as queixadas!
DIABO Oh que valentes levadas!
FRADE Ainda isto nom é nada...
Demos outra vez caçada!
Contra sus e um fendente,
e, cortando largamente,
eis aqui sexta feitada.

Daqui saio com üa guia
e um revés da primeira:
esta é a quinta verdadeira.
- Oh! quantos daqui feria!...
Padre que tal aprendia
no Inferno há-de haver pingos?!...
Ah! Nom praza a São Domingos
com tanta descortesia!

Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:

FRADE Vamos à barca da Glória!

Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel do Anjo desta maneira:

FRADE Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-rã;
rai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã.
Huhá!

Deo gratias! Há lugar cá
pera minha reverença?
E a senhora Florença
polo meu entrará lá!
PARVO Andar, muitieramá!
Furtaste esse trinchão, frade?
FRADE Senhora, dá-me à vontade
que este feito mal está.

Vamos onde havemos d'ir!
Não praza a Deus coa a ribeira!
Eu não vejo aqui maneira
senão, enfim, concrudir.
DIABO Haveis, padre, de viir.
FRADE Agasalhai-me lá Florença,
e compra-se esta sentença:
ordenemos de partir.

Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcoviteira, per nome Brízida Vaz, a qual chegando à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍZIDA Hou lá da barca, hou lá!
DIABO Quem chama?
BRÍZIDA Brízida Vaz.
DIABO E aguarda-me, rapaz?
Como nom vem ela já?
COMPANHEIRO Diz que nom há-de vir cá
sem Joana de Valdês.
DIABO Entrai vós, e remarês.
BRÍZIDA Nom quero eu entrar lá.

DIABO Que sabroso arrecear!
BRÍZIDA No é essa barca que eu cato.
DIABO E trazês vós muito fato?
BRÍZIDA O que me convém levar.
Día. Que é o que havês d'embarcar?
BRÍZIDA Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que nom podem mais levar.

Três almários de mentir,
e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assi em jóias de vestir,
guarda-roupa d'encobrir,
enfim - casa movediça;
um estrado de cortiça
com dous coxins d'encobrir.

A mor cárrega que é:
essas moças que vendia.
Daquestra mercadoria
trago eu muita, à bofé!
DIABO Ora ponde aqui o pé...
BRÍZIDA Hui! E eu vou pera o Paraíso!
DIABO E quem te dixe a ti isso?
BRÍZIDA Lá hei-de ir desta maré.

Eu sô üa mártela tal!...
Açoutes tenho levados
e tormentos suportados
que ninguém me foi igual.
Se fosse ò fogo infernal,
lá iria todo o mundo!
A estoutra barca, cá fundo,
me vou, que é mais real.

Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:

Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz.
ANJO: Eu não sei quem te cá traz...
BRÍZIDA Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,

a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.

Santa Úrsula nom converteu
tantas cachopas como eu:
todas salvas polo meu
que nenhüa se perdeu.
E prouve Àquele do Céu
que todas acharam dono.
Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponto se me perdeu!

ANJO Ora vai lá embarcar,
não estês importunando.
BRÍZIDA Pois estou-vos eu contando
o porque me haveis de levar.
ANJO Não cures de importunar,
que não podes vir aqui.
BRÍZIDA E que má-hora eu servi,
pois não me há-de aproveitar!...

Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

BRÍZIDA Hou barqueiros da má-hora,
que é da prancha, que eis me vou?
E já há muito que aqui estou,
e pareço mal cá de fora.
DIABO Ora entrai, minha senhora,
e sereis bem recebida;
se vivestes santa vida,
vós o sentirês agora...

Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

JUDEU Que vai cá? Hou marinheiro!
DIABO Oh! que má-hora vieste!...
JUDEU Cuj'é esta barca que preste?
DIABO Esta barca é do barqueiro.
JUDEU. Passai-me por meu dinheiro.
DIABO E o bode há cá de vir?
JUDEU Pois também o bode há-de vir.
DIABO Que escusado passageiro!

JUDEU Sem bode, como irei lá?
DIABO Nem eu nom passo cabrões.
JUDEU Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará.
Por vida do Semifará
que me passeis o cabrão!
Querês mais outro tostão?
DIABO Nem tu nom hás-de vir cá.

JUDEU Porque nom irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
DIABO E o fidalgo, quem lhe deu...
JUDEU O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!

PARVO Furtaste a chiba cabrão?
Parecês-me vós a mim
gafanhoto d'Almeirim
chacinado em um seirão.
DIABO Judeu, lá te passarão,
porque vão mais despejados.
PARVO E ele mijou nos finados
n'ergueja de São Gião!

E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor!
E aperta o salvador,
e mija na caravela!
DIABO Sus, sus! Demos à vela!
Vós, Judeu, irês à toa,
que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!

Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:

CORREGEDOR Hou da barca!
DIABO Que quereis?
CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?
DIABO Oh amador de perdiz.
gentil cárrega trazeis!
CORREGEDOR No meu ar conhecereis
que nom é ela do meu jeito.
DIABO Como vai lá o direito?
CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.

DIABO Ora, pois, entrai. Veremos
que diz i nesse papel...
CORREGEDOR E onde vai o batel?
DIABO No Inferno vos poeremos.
CORREGEDOR Como? À terra dos demos
há-de ir um corregedor?
DIABO Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!

Ora, entrai, pois que viestes!
CORREGEDOR Non est de regulae juris, não!
DIABO Ita, Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nacestes
pera nosso companheiro.
- Que fazes tu, barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes!

CORREGEDOR Oh! Renego da viagem
e de quem me há-de levar!
Há 'qui meirinho do mar?
DIABO Não há tal costumagem.
CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem,
nem hoc nom potest esse.
DIABO Se ora vos parecesse
que nom sei mais que linguagem...

Entrai, entrai, corregedor!
CORREGEDOR Hou! Videtis qui petatis -
Super jure magestatis
tem vosso mando vigor?
DIABO Quando éreis ouvidor
nonne accepistis rapina?
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for...

Oh! que isca esse papel
pera um fogo que eu sei!
CORREGEDOR Domine, memento mei!
DIABO Non es tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel
quia Judicastis malitia.
CORREGEDOR Sempre ego justitia
fecit, e bem por nivel.

DIABO E as peitas dos judeus
que a vossa mulher levava?
CORREGEDOR Isso eu não o tomava
eram lá percalços seus.
Nom som pecatus meus,
peccavit uxore mea.
DIABO Et vobis quoque cum ea,
não temuistis Deus.

A largo modo adquiristis
sanguinis laboratorum
ignorantis peccatorum.
Ut quid eos non audistis?
CORREGEDOR Vós, arrais, nonne legistis
que o dar quebra os pinedos?
Os direitos estão quedos,
sed aliquid tradidistis...

DIABO Ora entrai, nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados.
CORREGEDOR E na terra dos danados
estão os Evangelistas?
DIABO Os mestres das burlas vistas
lá estão bem fraguados.

Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal chegou um Procurador, carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:

CORREGEDOR Ó senhor Procurador!
PROCURADOR Bejo-vo-las mãos, Juiz!
Que diz esse arrais? Que diz?
DIABO Que serês bom remador.
Entrai, bacharel doutor,
e ireis dando na bomba.
PROCURADOR E este barqueiro zomba...
Jogatais de zombador?

Essa gente que aí está
pera onde a levais?
DIABO Pera as penas infernais.
PROCURADOR Dix! Nom vou eu pera lá!
Outro navio está cá,
muito milhor assombrado.
DIABO Ora estás bem aviado!
Entra, muitieramá!

CORREGEDOR Confessaste-vos, doutor?
PROCURADOR Bacharel som. Dou-me à Demo!
Não cuidei que era extremo,
nem de morte minha dor.
E vós, senhor Corregedor?
CORREGEDOR Eu mui bem me confessei,
mas tudo quanto roubei
encobri ao confessor...

Porque, se o nom tornais,
não vos querem absolver,
e é mui mau de volver
depois que o apanhais.
DIABO Pois porque nom embarcais?
PROCURADOR Quia speramus in Deo.
DIABO Imbarquemini in barco meo...
Pera que esperatis mais?

Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:

CORREGEDOR Ó arrais dos gloriosos,
passai-nos neste batel!
ANJO Oh! pragas pera papel,
pera as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
sendo filhos da ciência!
CORREGEDOR Oh! habeatis clemência
e passai-nos como vossos!
PARVO Hou, homens dos breviairos,
rapinastis coelhorum
et pernis perdigotorum
e mijais nos campanairos!
CORREGEDOR Oh! não nos sejais contrairos,
pois nom temos outra ponte!
PARVO Belequinis ubi sunt?
Ego latinus macairos.
ANJO A justiça divinal
vos manda vir carregados
porque vades embarcados
nesse batel infernal.
CORREGEDOR Oh! nom praza a São Marçal!
coa ribeira, nem co rio!
Cuidam lá que é desvario
haver cá tamanho mal!

PROCURADOR Que ribeira é esta tal!
PARVO Parecês-me vós a mi
como cagado nebri,
mandado no Sardoal.
Embarquetis in zambuquis!

CORREGEDOR Venha a negra prancha cá!
Vamos ver este segredo.
PROCURADOR Diz um texto do Degredo...
DIABO Entrai, que cá se dirá!

E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brízida Vaz, porque a conhecia:

CORREGEDOR Oh! esteis muitieramá,
senhora Brízida Vaz!
BRÍZIDA Já siquer estou em paz,
que não me leixáveis lá.

Cada hora sentenciada:
«Justiça que manda fazer....»
CORREGEDOR E vós... tornar a tecer
e urdir outra meada.
BRÍZIDA Dizede, juiz d'alçada:
vem lá Pêro de Lixboa?
Levá-lo-emos à toa
e irá nesta barcada.

Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados, disse o Arrais, tanto que chegou:

DIABO Venhais embora, enforcado!
Que diz lá Garcia Moniz?
ENFORCADO Eu te direi que ele diz:
que fui bem-aventurado
em morrer dependurado
como o tordo na buiz,
e diz que os feitos que eu fiz
me fazem canonizado.

DIABO Entra cá, governarás
atá as portas do Inferno.
ENFORCADO Nom é essa a nau que eu governo.
DIABO Mando-te eu que aqui irás.
ENFORCADO Oh! nom praza a Barrabás!
Se Garcia Moniz diz
que os que morrem como eu fiz
são livres de Satanás...

E disse que a Deus prouvera
que fora ele o enforcado;
e que fosse Deus louvado
que em bo'hora eu cá nacera;
e que o Senhor m'escolhera;
e por bem vi beleguins.
E com isto mil latins,
mui lindos, feitos de cera.

E, no passo derradeiro,
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos
era a forca e o Limoeiro;
nem guardião do moesteiro
nom tinha tão santa gente
como Afonso Valente
que é agora carcereiro.

DIABO Dava-te consolação
isso, ou algum esforço?
ENFORCADO Com o baraço no pescoço,
mui mal presta a pregação...
E ele leva a devação
que há-de tornar a jentar...
Mas quem há-de estar no ar
avorrece-lhe o sermão.

DIABO Entra, entra no batel,
que ao Inferno hás-de ir!
ENFORCADO O Moniz há-de mentir?
Disse-me que com São Miguel
jentaria pão e mel
tanto que fosse enforcado.
Ora, já passei meu fado,
e já feito é o burel.

Agora não sei que é isso:
não me falou em ribeira,
nem barqueiro, nem barqueira,
senão - logo ò Paraíso.
Isto muito em seu siso.
e era santo o meu baraço...
Eu não sei que aqui faço:
que é desta glória emproviso?

DIABO Falou-te no Purgatório?
ENFORCADO Disse que era o Limoeiro,
e ora por ele o salteiro
e o pregão vitatório;
e que era mui notório
que àqueles deciprinados
eram horas dos finados
e missas de São Gregório.

DIABO Quero-te desenganar:
se o que disse tomaras,
certo é que te salvaras.
Não o quiseste tomar...
- Alto! Todos a tirar,
que está em seco o batel!
- Saí vós, Frei Babriel!
Ajudai ali a botar!

Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrecentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da Paixão d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assi cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

CAVALEIROS À barca, à barca segura,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais
pola vida transitória,
memória , por Deus, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais,
Barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!

Vigiai-vos, pecadores,
que, depois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!
À barca, à barca, senhores,
barca mui nobrecida,
à barca, à barca da vida!

E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando, com suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

DIABO Cavaleiros, vós passais
e nom perguntais onde is?
1º CAVALEIRO Vós, Satanás, presumis?

Atentai com quem falais!
2º CAVALEIRO Vós que nos demandais?
Siquer conhecê-nos bem:
morremos nas Partes d'Além,
e não queirais saber mais.
DIABO Entrai cá! Que cousa é essa?
Eu nom posso entender isto!
CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo
não vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam, diz o Anjo:

ANJO Ó cavaleiros de Deus,
a vós estou esperando,
que morrestes pelejando
por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo mal,
mártires da Santa Igreja,
que quem morre em tal peleja
merece paz eternal.

E assi embarcam.

Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.


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